Naquele dia ela acordou desejando freneticamente que alguém munido de uma supra inteligência tivesse desenvolvido uma tecnologia que a possibilitasse voltar no tempo. Levantou-se apressada, ligou a TV, assistiu o noticiário, e nada. Voltou ao seu quarto, abriu uma das gavetas da cômoda na qual guardava seus diários, escolheu um deles aleatoriamente, abriu uma página e leu alguns trechos. Fechou os olhos apertando ligeiramente as pálpebras esperando que alguma coisa acontecesse, mas nada aconteceu. Então, reabriu os olhos e se viu ali, uma mulher estúpida de vinte e poucos anos, sentada em uma cama pequena de um quarto pequeno, de uma casa pequena em uma rua pequena, de uma cidade pequena de um mundo gigante. Sentiu que era apenas uma mulher estúpida querendo voltar a ser criança.
“Que saudade de mim, de quando tinha nove anos” - pensou. “Quando eu tinha esta idade, sabia exatamente o que estava fazendo e tinha certeza de onde eu iria chegar. Quando eu tinha nove anos, me sentia forte e madura, havia um brilho estranho no meu olhar e um sorriso entusiasmado no meu rosto. Hoje sou apática e fraca, minhas pernas mal suportam o peso do meu copo e há qualquer coisa com o peso de um mundo instalado nas minhas costas. Hoje eu não faço a menor idéia de pra onde estou indo e tenho sérias dúvidas se vou conseguir chegar em algum lugar.” - Depois de um ou dois minutos olhando pros retratos que ficavam sobre a escrivaninha, ela colocou a mão sobre os olhos e esperou que acontecesse. Logo, logo vieram os soluços e a respiração ficou ofegante, várias lágrimas despencaram e molharam os dedos que tentavam esconder aquele rosto gélido e sofrido de uma criança que acordara de repente e percebera que havia um universo lá fora, com pessoas e seres estranhos que exigiam dela algo muito além do que ela estava preparada para oferecer. Quis se esconder. Debaixo da cama talvez fosse o melhor lugar. Entretanto, apenas se virou, deitou-se e ficou a admirar o teto por alguns segundos.
Sentiu falta de quando o seu maior medo era o escuro. Sentiu saudade de quando os desafios eram nadar até a grade da lagoa ou atravessar a piscinona do clube. Sentiu saudade do tempo que não tinha responsabilidades e de quando ficava a tarde inteira de pernas pro ar vendo Pica-pau, Tom e Jarry, Pateta e Max, Mickey e Donald, comendo fandangos, e aquilo não lhe trazia uma imensa sensação de culpa. Sentiu saudade de pensar ‘no que seria quando crescesse’ e desejou, por um momento, esquecer que havia crescido.
Sentiu saudades de quando as pessoas confiavam nela, de quando era uma das primeiras da turma, certamente premiada no final do ano pelas boas notas. Sentiu saudade de quando a cidade era pequena demais, e de quando ela acreditava que tinha asas e que poderia voar. Sentiu saudade do tempo em que lhe denominavam ‘a artista’, ‘a cheia de talentos e a de futuro brilhante’. Sentiu saudade dos palcos, da criatividade e dos sorrisos. Sentiu falta dos amigos que deixara lá atrás, em algum lugar. Sentiu falta do que era e repugnou aquilo que havia se tornado.
Ergueu-se lentamente, como se fosse uma rocha e alguém estivesse a guinchá-la. Foi até o banheiro, jogou um pouco de água no rosto e viu sua imagem refletida no espelho. “Cadê a arte que estava em mim?” - pensou. “O gato comeu ou o tempo levou? Não me reconheço mais quando me olho no espelho. Ques olhos sem brilho são estes que me fitam? Onde foi parar aquela criança que acreditava que tudo era possível?” - Magicamente a imagem se mexeu e foi se dissolvendo paulatinamente até que ela percebeu que alguém com um sorriso tímido a admirava. Era uma criança de nove ou dez anos, pele clara, cabelos cacheados que escorriam pelos ombros, um ar de autoestima elevado e confiança. A imagem mais uma vez se dissolveu, e aos poucos, com certa dificuldade, outra foi se formando. Desta vez uma senhora de uns sessenta anos, cabelos curtos e mal pintados, com um olhar triste e frustrado, olhou para ela. Quando a percebeu ali, a mulher cerrou os olhos e havia raiva neles, como se culpassem a jovem de alguma coisa. Ela tentou dizer “sinto muito”, “não foi minha culpa”, mas a mulher se fora, a imagem havia sumido, e tudo que ela viu diante de si foram seus olhos cheios de medo - sentimento este, aliás, era o único que sabia sentir há dias – novamente no espelho.
- Marina
Pra combinar:
Olá, Marina. Gostei do conto.
ResponderExcluirmuito bom viu ...."Ela tentou dizer “sinto muito”, “não foi minha culpa”, mas a mulher se fora, a imagem havia sumido, e tudo que ela viu diante de si foram seus olhos cheios de medo - sentimento este, aliás, era o único que sabia sentir há dias – novamente no espelho."
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